A História que a Fotografia vê
De todas as ramificações mais excitantes dessa profissão, a que mais me toca mesmo é a História. É o que mais me interessa, em tudo. É a história. A grande e a pequena. A coletiva e a individual. A que vivemos e a que ouvimos falar. Mas principalmente, por força do hábito, a que vemos e a que mostramos, mesmo aos que não querem ver. A fotografia tem essa vantagem e fotógrafos-jornalistas são aqueles que fazem de tudo pra aproveitar essa oportunidade.
Porque esse assunto? As mobilizações dos operários metalúrgicos nas décadas de 1970/80, na região Metropolitana de São Paulo, tem o seu momento mais importante nas greves de 78/79/80. São um marco na história das lutas populares no país e a expressão de uma experiência coletiva de trabalhadores que entusiasmou grande parte da sociedade civil nacional. Revelam a capacidade da solidariedade na luta contra o estado autoritário, como poucas vezes se viu na nossa História.
Os registros fotográficos desses acontecimentos apresentam um olhar racional, jornalístico e uma leitura emocional, fotográfica e isso é fundamental para entender o que acontecia com o pais naqueles anos. Uma experiência como essa, que empolgou centenas de milhares de trabalhadores, em torno de causas justas, necessárias e urgentes não podia ser de outro jeito, mesmo. Em todas as imagens, encontradas na pesquisa, podemos constatar, principalmente, que a história de um povo está na cara, nos gestos, nas ações, coletivas e individuais, que sofrem as derrotas e festejam as vitórias.
Revisitar esse "acervo" confirma a dimensão da necessidade de resgatar um dos momentos mais transformadores do Movimento Operário, na nossa história recente. Incentivar a divulgação dessa memória visual se apresenta como uma obrigação frente à História. Uma das mais vastas documentações da vida operária, na nossa. No final dos anos 1970 e começo dos 1980, nessa crescente mobilização dos movimentos populares contra a ditadura dos generais e dos empresários, vivia-se uma atmosfera de mudança, com a mobilização de diversas organizações de trabalhadores, inclusive jornalistas. Todas reivindicando direitos e liberdade. Nesse contexto, as greves metalúrgicas em São Paulo e no ABC representam, tanto para o movimento operário e sindical quanto para o fotojornalismo brasileiro uma experiência de solidariedade, cumplicidade e consciência que marcou muitas vidas. Consequência disso ou não, um grande número de fotógrafos passou a concentrar sua atenção no registro de uma documentação jornalística que garantisse o Fato e valorizasse a Realidade. Um conceito básico que precisava ser posto em prática, em tempos de censura militar à imprensa. Uma década antes, uma geração de foto jornalistas no Rio e Brasília, como Walter Firmo e Evandro Teixeira haviam registrado com garra, ousadia e destreza a selvageria com que a polícia reprimia estudantes e trabalhadores entre os anos de 1964 e 1968. Garantiram que a população visse como agiam as polícias e como eram brutalmente tratados aqueles que defendiam a democracia. Era necessária muita raiva para denunciar a fragilidade de quem apanhava. No fim dos '70, uma década depois, embora a repressão não tenha diminuído, os profissionais que atuavam nos centros industriais tinham a oportunidade de revelar a reorganização dos trabalhadores, a renovação de suas lideranças, suas grandes manifestações e longas greves que desafiavam Estado e Capital, ao mesmo tempo. Forma-se uma geração de jornalistas movida por um sentimento de satisfação em ter que relatar o Novo. Havia prazer em registrar a reação coletiva da parte mais oprimida da sociedade.Uma das consequências disso é o surgimento no fotojornalismo brasileiro, de uma nova postura profissional e política. Um comportamento que possibilitou muita troca de experiência e conhecimento. Muitos profissionais buscaram, cada vez mais, uma fotografia abrangente, inclusiva, vivenciada, que não nos deixassem esquecer das derrotas mas valorizassem, com prazer, as vitórias na luta cotidiana, na greve, nas fábricas, nos bairros, nas ações coletivas.Vários desses profissionais, fotógrafos jornalistas ou jornalistas fotógrafos, como quer que se queira chamar, trabalhavam com a certeza da importância de que aqueles registros deveriam voltar aos trabalhadores como informação e como reconhecimento da força da resistência que vinha das suas próprias ações. É, também, na virada dessas décadas que o fotojornalismo brasileiro começa a ganhar dimensão mundial e consciência profissional, nos grandes centros de comunicação do pais. Dos prêmios e bolsas concedidos à reportagens fotográficas marcantes na história do jornalismo global às reuniões e debates que criaram associações e agencias de fotógrafos, tudo que se viveu nesses anos representou uma experiência fantástica de vitalidade e compromisso, para aqueles que se interessavam pelas intimas relações entre Informação e Fotografia.
Porque esses caras?
Talvez porque esses profissionais se conheçam há mais de três décadas, e partilhem valores e concepções parecidas sobre a realidade, lá e aqui. Pode ser um bom motivo. Na verdade, não são nem um grupo de profissionais com uma atuação comum, específica e coordenada e nem todos permanecem na fotografia profissional atualmente. Muitas diferenças, na verdade. Mas todos tem em comum o fato de que circularam, naqueles tempos, com os mesmos interesses e preocupações pelas portas de metalúrgicas grandes e pequenas, pelas passeatas cheias de trabalhadores, policiais e bombas de gás; pelas assembleias com dezenas de milhares de metalúrgicos em São Paulo e São Bernardo, pelas madrugadas nos piquetes da zona sul ou no sindicato, em véspera de intervenção. Tanto como profissionais quanto como cidadãos, essas pessoas aprenderam, juntas, muitas coisas que se acrescentaram às suas vidas. Por conta do que viveram, mostraram a história que viram. Todos são, antes de tudo, cidadãos que reconhecem o valor do documento que produziram. E as imagens que produziram naquela época tem muita coisa em comum, inclusive por toda sua variedade. Tantas as semelhanças e as notórias diferenças. Tantas particularidades e as inúmeras abrangências. Embora sejam fotógrafos vindos de pontos geográficos e sociais bem diversos, se expressam com uma identidade estética e crítica tão grande que juntos constroem uma narrativa sólida e objetiva.
São tantas coincidências na diversidade de olhares que justificam a pretensão de apresentar essa coleção de fotografias e fotógrafos como representantes de um ponto de inflexão no fotojornalismo brasileiro.
Todos cobrimos esses acontecimentos por iniciativa própria, mesmo quando trabalhávamos contratados por algum veículo de comunicação.
De alguma forma e talvez por motivos diversos, tínhamos a certeza de que aquela História era a que precisávamos viver e, por opção de ofício, torná-la pública. Tínhamos consciência política da situação que vivíamos e registrávamos tudo com a certeza de que só o que é visto pode ser conhecido e pensado. Tivemos essa produção fotográfica publicada, principalmente, em jornais e revistas que se opunham à ditadura civil militar imposta ao país em 1964.
Por isso muitas dessas imagens que circulavam nessa mídia alternativa de esquerda eram, também, publicadas em vários boletins de associações e sindicatos de trabalhadores como solidariedade dos fotógrafos.
De forma ativa, todos, colaboramos para as discussões sobre a profissão de foto jornalista naqueles dias, no pais.
Como se reconhecer profissional na categoria não-existente dos freelancer? Como se reconhecer jornalista quando nem os "coleguinhas" da redação reconheciam? Como se reconhecer trabalhador num grupo marginalizado até pelo sindicato da categoria? Nenhum de nós se furtou a participar intensamente desses debates.
É opinião comum entre essas pessoas que viver esse período foi um estímulo vital a todos que acreditavam que era preciso mobilizar a sociedade civil contra o Estado autoritário e violento. A presença de um Movimento Metalúrgico combativo e organizado garantiram a consistência necessária à essa documentação. Todos foram colocados de frente para a história e deu no que deu: esses acontecimentos, de forma decisiva, contribuíram para o fim da ditadura civil-militar e para os avanços democráticos que vieram a seguir. Nessa tarefa de curadoria e edição, pude confirmar o valor e a força do testemunho visual daquele que é uma das mais cruciais passagens da história dos trabalhadores, em São Paulo. Essas imagens expressam a importância de reavivarmos essas narrativas. Uma possível história da militância pela comunicação plural e democrática. Pelo recorte escolhido, devolvemos o protagonismo histórico aos que sempre estiveram submetidos ao protagonismo alheio: os Trabalhadores. Procuramos dar contexto e coerência à essa pluralidade de testemunhos fotográficos. Ensejamos, com os olhares daquele tempo, expor os registros factuais, da maior disputa entre capital e trabalho, das últimas décadas, no país. Definitivamente, essa publicação não vai esgotar nem o assunto nem o acervo de imagens que contam esse pedaço da nossa democracia em construção. Ainda há muito para se mostrar. O que fazemos aqui é só apresentar fatos vividos para permitir que sejam refletidos na experiência de vida de cada um, nos dias que correm. Nos tempos dúbios, desse inconsistente 2016, isso se torna ainda mais necessário para não perdermos o fio da meada.
Agosto/2016
(Publicado no livro "Máquinas Paradas - Fotógrafos em Ação")